A Discovery Channel lançou esse documentário (que pode ser encontrado legendado no link) associando elementos chaves do desenvolvimento da humanidade com o consumo de cerveja. E devo dizer… o documentário é muito bom! Muitas informações que são jogadas na tela batem com o que vem sendo defendido por antropólogos, arqueólogos e historiadores,de uma forma divertida e interessante! Com uma abordagem muito superior a diversos cursos universitários nacionais.
Porém… não sem alguns exageros. O documentário misturam acontecimentos da sociedade humana com os hábitos cervejeiros da humanidade e pulam para uma conclusão precipitada sobre falsa associação. Assim como o documentário separa os tópicos por períodos da civilização, irei fazer o mesmo ressaltando o que é factível da história da humanidade e aonde foram tomadas algumas liberdades criativas para reforçar a premissa do documentário.
Civilizações clássicas
Realmente a humanidade se assentou quando aprendeu a dominar a agricultura e o processo de cultivo favoreceu o desenvolvimento de tecnologias que facilitavam a vida em sociedade. E sim, a cerveja foi um dos primeiros produtos trabalhados da agricultura e é quase consenso que os primeiros escritos sumérios eram sobre receitas de cerveja.
Porém nem todos. Veja, a cerveja não era o único commoditie fabricado e esses textos eram responsáveis por toda as trocas comerciais e registro de trabalho, não só nas trocas e produções de cerveja. E é estabelecido que a domesticação de animais foi desenvolvida junto com a agricultura (que a grosso modo, seria a domesticação de plantas).
Então todas as tecnologias de tratamento de solo, logística e armazenamento de produtos, registros escritos e trocas comerciais foram criados para atender a TODOS os commodities, não só a cerveja. Ainda que ela fosse uma das principais. E sim, os egípicios pagavam seus funcionários com cerveja.
Cerveja e a Medicina
Não há muito o que dizer aqui. É tudo verdade! É comprovado que a produção de cerveja do Antigo Egito usava a bactéria estreptomicetos e esta, por sua vez, produzia o antibiótico chamado “Tetraciclina”. Contanto não é certo se a cerveja era usada de fato para fins medicinais ou a relação era casual.
O mesmo serve para a água suja de vilas medievais que, ao passar pelo processo de fervura de mosto, matava todas as bactérias danosas na água, deixando potável a bebida. Tanto no Egito como na Idade Média crianças também bebiam e pelo simples motivo que a própria ideia de “infância” é um conceito moderno. Por isso não havia preocupação de que crianças bebessem bebidas alcoólicas, ainda que de grau baixo.
Cervejarias e a criação do capitalismo
É uma inocência sem tamanho imaginar que um só produto pode transformar toda a economia, essa pontuação dá um salto enorme na lógica e é falaciosa. Porém a cerveja acompanhou sim as reformas do comércio, mas apenas como um produto em meio a outros. Já falei num texto sobre as “alewifes” e as micro cervejarias medievais. então não há muito a dizer que, apesar da igreja centralizar bastante o comércio de bebidas, existiam sim pequenos comerciantes de cerveja por toda a Europa, por toda a idade média.
No texto também digo sobre como a cerveja e todo o comércio medieval foi prejudicado pela peste negra e como ele se recuperou na modernidade pelo uso do lúpulo, que ajudava a conservação do produto. Mas repito, o comércio não funcionava em função de um só produto e, ao invés da cerveja alimentar a economia, era a economia que proporcionou melhor distribuição do produto.
A cerveja e os EUA colonial
Sim, a fundação dos EUA em Plymouth aconteceu porque os navios estavam sem cerveja e viveram de bebidas fermentadas a base de nozes nos primeiros tempos de colônia e sim, a taverna era um local sociável na idade média e moderna. Não é a toa que a maioria das histórias de fantasia e RPG começam em uma.
A taverna como função social só mudaria no começo da Idade Contemporânea pelos “cafés” franceses. Antes disso as pessoas se juntavam nas tavernas para conversar, trocar informações intelectuais e sim, conspirar contra o governo. E sim, o hino dos EUA foi baseado numa música de bar chamada “To Anacreon in Heaven”.
Cerveja e a a tecnologia moderna
Sim, a técnica de pasteurização criada por Louis Pasteur que possibilitou a sanitarização do leite foi feita em estudo a cerveja e com isso, ele criou a teoria dos germes, revolucionando a medicina e salvado milhares de vidas. E sim, apesar das lagers existirem desde a idade média, sendo fermentadas a temperaturas baixas alcançadas no subsolo, foi a indústria cervejeira que não só financiou a criação de refrigeração artificial para a produção desse estilo em massa, como para o consumo.
Quanto a dizer que a cerveja é a responsável pela automação da industria americana e pelo fim do trabalho infantil, cai no mesmo erro sobre dizer ser a responsável pela criação do capitalismo, ou seja, atribui a apenas um commoditie a transformação de toda a economia, que na verdade é muito mais colaborativa. E é uma teoria liberal consistente que a automação do trabalho favoreceu a diminuição do trabalho infantil, mas não podemos desmerecer as conquistas trabalhistas conquistadas pela organização social.
Conclusão
Um ótimo documentário que acompanha o desenvolvimento da produção e consumo da cerveja em continuidade com o desenvolvimento da humanidade. Mas o documentário peca em imaginar que apenas a cerveja é esse fio condutor civilizatório da humanidade.
Um recurso comum da Nova História, pega-se uma coisa isolada e tenta traçar uma relação da humanidade com o objeto de estudo conforme a ação do tempo. Transitando da micro história para a macro. O que o documentário fez foi adaptar essa ideia para a descrever a história da cerveja, e faz um ótimo trabalho com isso. Porém peca na hora de reservar a cerveja seu lugar na história. Como apenas um objeto em meio a toda criação humana.